Quando Parar de Sentir nos Afasta do Sagrado que Somos.


por Alice Moretti


“Sentir é a linguagem da alma.

E quando calamos o sentir, silenciamos o sagrado que habita em nós.”


Existe um medo silencioso que habita muitas de nós.

Não grita. Não escandaliza.

Ele apenas se instala — devagar — e vai nos afastando da gente mesma.

Esse medo se chama medo de sentir.



Não falo do medo de uma emoção específica, mas do medo de mergulhar no que nos torna humanos:

a vulnerabilidade.

a entrega.

a dor que transforma.

o amor que transborda.

a raiva que também precisa de espaço para ser compreendida.


Por medo de sentir, criamos defesas.

Erguemos muros invisíveis.

Construímos rotinas ocupadas demais, nos cercamos de distrações, e passamos a chamar isso de “vida normal”.

Mas algo começa a adoecer por dentro.


A dor como professora esquecida


Sentir dor nunca foi o problema.

O que adoece é não dar nome à dor, não permitir que ela se expresse, que seja

escutada.

A dor é uma professora antiga.

Ela não vem para punir, mas para mostrar onde a alma sangra em silêncio.


Os povos de terreiro sabem disso.

Aprendemos ali que o corpo fala.

Que um cansaço que não passa pode ser tristeza represada.

Que uma dor que insiste pode ser grito da alma.

Que o silêncio de uma criança pode esconder o abandono.

E que um choro contido, quando acolhido, vira reza.


Desconectar-se das próprias emoções é como abandonar o próprio orixá no meio da encruzilhada.

É virar as costas para a força que nos molda.

É deixar de lado o axé que pulsa em cada célula.


O coração é um terreiro


No fundo, sabemos que não viemos a esse mundo apenas para sobreviver.

Viemos para sentir a vida em sua plenitude.

Para celebrar, para sofrer, para rir alto, para se calar quando for preciso, para dançar na beira do abismo e confiar que ali também há chão.


O coração é um terreiro sagrado.

É ali que os sentimentos fazem ponto, que as memórias se ajoelham e que as intuições se manifestam como guias.

Negar o que sentimos é como expulsar Exu da porta.

É interromper o fluxo.

É bloquear o caminho da fé.


Mas quando permitimos sentir, o axé se restabelece.

O corpo dança.

A alma canta.

O sagrado se manifesta, não como milagre, mas como reconexão.


O medo de sentir não é só individual — é coletivo


Vivemos numa cultura que valoriza a produtividade, não a sensibilidade.

Onde mostrar emoções é sinal de fraqueza.

Onde o choro é calado desde a infância com frases como “engole o choro” ou “isso é coisa da sua cabeça”.


E o resultado é um coletivo exausto, ansioso, insatisfeito.

Gente que não sabe mais nomear o que sente.

Que vive pela metade.

Que pede ajuda sorrindo.

Que reza pedindo cura, mas tem medo de olhar para a ferida.


Por isso, reconhecer o medo de sentir é revolucionário.

É um ato de desobediência ao sistema e de obediência à alma.

É dizer: “Eu me autorizo a ser inteira.”


A cura começa onde dói


Em muitos rituais sagrados, o início da cura é o reconhecimento.

É quando dizemos:

“Eu não sei mais quem sou.”

“Eu me perdi de mim.”

“Eu quero voltar.”


É nesse momento que a ancestralidade se aproxima.

Que os guias se fazem sentir.

Que a mata acolhe.

Que o tambor pulsa no ritmo da reconstrução.


Sentir é o primeiro passo para voltar para casa.

E casa, aqui, não é endereço. É essência.

É o ponto onde a dor encontra acolhimento, onde o medo encontra coragem, onde a raiva encontra canal para ser transmutada.

É ali que se faz rezo.

Não com palavras decoradas, mas com a verdade da emoção crua.


Reconectar é lembrar


A reconexão com o sagrado em nós não exige perfeição.

Não exige que tenhamos respostas.

A alma não quer que você saiba tudo.

Ela só quer que você esteja presente.


Feche os olhos.

Sinta.

Onde dói?

O que pulsa?

Que parte de você tem sido ignorada?


Rezar, muitas vezes, é apenas permitir-se sentir em silêncio.

É colocar o pé descalço na terra e lembrar que você faz parte.

Que não está separado.

Que o sagrado nunca te deixou.

Você apenas se afastou — e tudo bem.


Voltar é sempre possível.

Basta respirar com consciência.

Basta olhar para dentro e dizer:

Eu me permito sentir.


https://vidasemmovimento.com/


Colaboração entre Alice Moretti e o blog Terreiro de Rezo. No silêncio que fica deixo um rezo de gratidão. Obrigado Alice. Santiago Rosa.

Comentários

  1. O coração é um terreiro onde sentimentos dançam e a alma encontra cura. Gratidão por essa reflexão que inspira!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que comentário lindo e cheio de sensibilidade! 💛 Fico imensamente grata por suas palavras e pela conexão que esse conteúdo despertou. Que a dança dos sentimentos continue te levando a lugares de cura e luz. ✨

      Excluir
  2. TEXTO LINDO, EXTREMAMENTE SENSÍVEL, VERDADEIRO E INSPIRADOR!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigada! 💛 Fico feliz que o texto tenha tocado você de forma tão especial. Que ele continue te inspirando e acolhendo sempre que precisar! ✨

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas