Nanã e o Portal do Desencarne: A Guardiã da Passagem Entre Mundos
por Santiago Rosa
Há mistérios que habitam as águas paradas, segredos que se escondem na lama dos pântanos onde o tempo parece suspenso entre o que foi e o que será. Ali, onde a vida e a morte se encontram num abraço ancestral, reina soberana uma força que poucos compreendem em sua totalidade: Nanã Buruquê, a mais antiga das Iabás, a Senhora dos mangues, a guardiã do portal sagrado entre os mundos.
Quando falamos de desencarne nas tradições afro-brasileiras, não estamos apenas tratando do fim de uma jornada terrena. Estamos adentrando um território sagrado onde cada alma que parte encontra o colo maternal de quem a recebeu no momento de sua chegada ao mundo físico. Nanã não é apenas testemunha desse processo - ela é a própria essência da transformação, a força primordial que governa tanto o nascimento quanto a partida, tanto a memória quanto o esquecimento necessário para a evolução espiritual.
Este artigo convida você a mergulhar nas águas profundas da sabedoria ancestral, a compreender como essa Orixá milenar atua no momento mais delicado da existência humana: a passagem do mundo material para o espiritual. Prepare-se para descobrir verdades que podem transformar sua compreensão sobre a vida, a morte e os ciclos eternos da existência.
A Senhora dos Pântanos e a Guardiã do Portal
Nanã Buruquê, em sua essência mais profunda, é a própria representação do que é primordial, do que é anterior a tudo. Ela é a lama, o barro que moldou a carne, o útero de onde tudo emerge e para onde tudo retorna. Seus domínios são os pântanos, as águas paradas, os mangues – locais que, à primeira vista, podem parecer estagnados, mas que pulsam com uma vida peculiar, um ciclo contínuo de decomposição e renascimento. É nesse ambiente que Nanã manifesta seu poder, simbolizando a transição, a transformação incessante da matéria e do espírito.
No terreiro, a presença de Nanã é sentida na quietude que antecede a tempestade, na sabedoria que se acumula com o tempo, na paciência da natureza que tudo acolhe e tudo transforma. Ela é a guardiã do portal, a sentinela que se posta entre o Ayê (o mundo dos vivos) e o Orun (o mundo espiritual). Não há passagem sem sua permissão, não há retorno sem seu acolhimento. É ela quem detém a chave para os mistérios da vida e da morte, a ancestral que conhece os caminhos de ida e volta, os segredos do renascimento e do descanso eterno.
Quando um fio de vida se rompe no plano terreno, é Nanã quem estende suas mãos ancestrais para receber a alma que se desprende. Ela não julga, não condena; apenas acolhe. Seu abraço é o retorno ao barro primordial, à essência de onde viemos. É um processo de decantação, onde as impurezas da vida material são lavadas nas águas de Nanã, preparando o espírito para a próxima etapa de sua jornada. Ela é a ponte, o caminho seguro para o reencontro com a origem, com a ancestralidade que nos habita.
O Desligamento e a Preparação para o Novo Ciclo
No momento do desencarne, a atuação de Nanã é de uma delicadeza e profundidade ímpares. Ela não é a Orixá da morte no sentido de ceifar vidas, mas sim a Senhora da transição, aquela que auxilia no desligamento da alma do corpo físico. É um processo de decantação, onde as emoções densas, os apegos e as reminiscências da vida terrena são suavemente dissolvidos em suas águas. Imagine um rio que, ao encontrar um pântano, deposita nele todo o sedimento que carregava, tornando-se mais leve e límpido para seguir seu curso. Assim age Nanã com o espírito que retorna ao seu domínio.
Ela acolhe o espírito em seu regaço, oferecendo o descanso necessário para que a alma se reorganize e se prepare para o que virá. Seja para um período de repouso e aprendizado no plano espiritual, seja para uma nova jornada reencarnatória, Nanã garante que o espírito esteja apto a prosseguir. É um trabalho de purificação e reajuste, onde a sabedoria ancestral de Nanã se manifesta em cada partícula de lama que se desprende, em cada memória que se esvai, em cada apego que se desfaz. Ela é a grande mãe que, com sua paciência milenar, prepara seus filhos para os desafios e as bênçãos dos ciclos futuros, garantindo que a evolução seja contínua e que o retorno à fonte primordial seja sempre um caminho de luz e aprendizado.
Nanã e a Memória do Espírito: O Esquecimento Necessário
Um dos aspectos mais intrigantes e, por vezes, desafiadores da atuação de Nanã no desencarne reside em sua influência sobre a memória do espírito. No plano terreno, a memória é um tesouro, um registro de experiências, aprendizados e afetos. No entanto, para a alma que se prepara para uma nova jornada, o excesso de lembranças e os acúmulos emocionais de vidas passadas podem se tornar um fardo, um entrave para a evolução. É nesse ponto que Nanã, com sua sabedoria ancestral, atua como a grande “apagadora” de memórias, a Senhora do esquecimento necessário.
Ela não apaga a essência do ser, mas sim decanta as reminiscências que não servem mais, dilui os apegos que prendem o espírito ao passado. É um processo de limpeza profunda, que permite à alma se desvencilhar de padrões repetitivos, de dores antigas e de tudo aquilo que impede o fluxo natural da evolução. Por isso, Nanã é frequentemente associada à velhice e à senilidade, fases da vida em que a memória, por vezes, começa a se esvair. Essa dissipação não é um castigo, mas um convite ao desapego, uma preparação para o retorno ao barro primordial, onde a alma se renova e se prepara para novas experiências, sem o peso do que já foi. É a dádiva do esquecimento que abre as portas para o novo, para o desconhecido, para a infinita possibilidade de ser e de aprender.
A Sabedoria de Nanã: Um Convite à Reflexão
Compreender Nanã Buruquê e sua profunda relação com o desencarne é mais do que assimilar um mito; é mergulhar na cosmovisão de um povo que enxerga a vida e a morte como partes indissociáveis de um ciclo sagrado. Ela nos ensina que o fim não é um ponto final, mas uma vírgula, um convite ao recomeço, à transformação. Suas águas paradas, que muitos veem como estagnação, são na verdade o berço da renovação, o lugar onde a alma se purifica para seguir adiante.
Que a sabedoria de Nanã nos inspire a olhar para o desencarne não com temor, mas com a reverência que se dedica a um portal sagrado. Que possamos compreender que, ao retornarmos ao barro primordial, estamos apenas nos preparando para uma nova semeadura, um novo florescer. Que a Senhora dos pântanos, a ancestral que tudo acolhe e tudo transforma, nos guie em cada passagem, em cada ciclo, rumo à plenitude do ser. Axé!



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