Da Fazenda ao Céu: O Amor Eterno de Vovó Maria do Rosário e Seu Zé

 Ah, meu fio... senta aqui pertinho de vovó Maria do Rosário, que hoje eu vou contar uma história que é como um rio: começa quietinha, mas vai crescendo, enchendo o coração de emoção até transbordar. É uma história de amor, de fé, de saudade e de reencontro. Uma história que vive aqui, no terreiro, onde a terra é fértil e as palavras são sementes que brotam em forma de memórias.  

Da Fazenda ao Céu


Vosuncê sabe como é, né? Quando vovó senta no banquinho, entre uma tragada de fumo e um gole de café quentinho, as histórias vêm com um sabor especial. E hoje, eu vou falar do meu Zé. Ah, meu Zé... ele era mais velho que eu, fio, e partiu antes de mim, fez sua passagem de plano com uma serenidade que só ele tinha. Mas eu sabia, no fundo do meu coração, que num tempinho curto, nóis ia se encontrar de novo. Ele foi assim, tranquilo, como sempre foi nessa vivência terrena de vocês. E eu fiquei aqui, cuidando dos meus fios, dos meus netos, com aquela saudade que às vezes apertava o peito. Mas, quando a saudade vinha, eu lembrava da vida boa que tive com ele, e aquilo me acalmava. Eu sabia que ia viver tudo de novo com meu Zé, era só ter paciência e esperar o momento certo.  

As lembranças, fio, vinham como vento forte, trazendo cheiros, sons, cores... Lembro das reuniões que ele fazia no quintal de casa. Chamava todos os pretos que tinham permissão dos patrões pra vir se encontrar com a gente. Uns traziam mandioca, outros abóbora, e tinha quem trouxesse um pouco daquela do alambique, sabe? E sempre tinha o toque dos tambores, que animava a noite. Ah, fio, eu era dançadeira! Adorava dançar, ficar animada, alegre. Meu Zé não tinha muito jeito pra dança, mas ele sempre dava um jeito de dançar comigo, porque sabia que isso me alegrava. E eu gostava tanto...  

Ah, mas eu não falei que essas reuniões eram com toda a família, né? Vinham os filhos todos, os menorzinhos ficavam num cercadinho de madeira, pra não acontecer nenhum perigo, e os mais velhos cuidavam. Ver meu Zé ali, no meio de todos, com aquela alegria, conversando, abraçando, me enchia de orgulho e satisfação. E tinha também as rezas, fio. A nossa crença sempre esteve presente, e quando a gente se reunia, era também com esse propósito.  

Tive uma vida boa, fio. Meu Zé sempre foi cuidadoso comigo, nunca deixou faltar nada na nossa família. Ele cuidava de todos nós com um amor que só crescia com o tempo. E por tudo isso, a passagem de plano dele foi tranquila, serena. Ele sabia que tinha feito o melhor, apesar da vida simples e difícil, do trabalho pesado, das responsabilidades que o patrão dava pra ele.  

Então, num dia de sol quente, que não deixava nuvem se formar, eu estava ao lado dos meus fios, dos meus netos, com lágrimas de alegria nos olhos. Abracei cada um deles, um por um, antes de fazer minha passagem de plano. E foi lindo, fio. Fui recebida por um protetô e uma falange enorme, que vieram com luzes brilhantes, de cores tão diferentes das que eu estava acostumada a ver na vivência terrena. Aceitei o convite do protetô, que agarrou minha mão e me disse que tinha uma surpresa pra me mostrar. Em nenhum momento tive dúvida de que minha nova morada era ali, e que seguindo as orientações daquele protetô, eu estaria no caminho certo.  

Então, saímos a caminhar e a prosear. Sim, fio, eles gostam de prosear, assim como eu sempre gostei. No caminho, era só imagem bonita: meus fios nascendo, crescendo, as festas, os casórios de alguns deles, meu Zé chegando em casa com uma braçada de mandioca que tinha ganhado do patrão... Era tudo lindo, fio. Cada passo em diante era uma imagem dessas, e meu protetô ia falando do quanto Oxalá esteve satisfeito com a minha vida, de como eu espalhei amor enquanto estive na vivência terrena.  

Saimos daquela estrada de chão, que me lembrava onde morei, e entramos num campo verde, de grama baixinha, com um vale ao fundo. Avançamos em direção ao vale, sempre proseando, porque meu protetô era assim, gostava da prosa. Sem que eu percebesse, aquele gramado imenso tinha virado um canavial, com uma brisa que balançava as folhas das canas e trazia aquele aroma de melado, que a gente fazia nas fazendas dos patrões do meu Zé. Passamos também por um cafezal, com frutos lindos, prontos pra colher. Lembrei do cafézinho que meu Zé fazia pra mim quando eu acordava, e já estava todos os fios em volta da mesa, me esperando.  

Essas imagens, fio, iam aparecendo na minha frente, e era só alegria, com a chance que eu tinha de ver tudo de novo. E a caminhada seguia. Lá na frente, eu vi a fazenda do patrão onde a gente morava. A casa grande, toda branquinha, com janelas azuis, os cachorros deitados debaixo das árvores, pra se refrescar do sol. E o jardim, fio... o jardim do lado da fazenda estava tão lindo! Era o Zé que cuidava dele, na vivência terrena. Ele tinha um cuidado tão grande, e às vezes o patrão deixava ele trazer um maço de flores pra mim. Meu Zé, fio, sabia me agradar.  

Eu lembrei que, mais ao fundo daquele jardim, tinha um banco com balanço. Pedi pro meu protetô pra ir ver. Era onde o patrão e a patroa sentavam no final da tarde, nos dias quentes, pra tomar uma limonada refrescante e descansar. Eu sempre quis sentar ali, mas não fazia por respeito, porque o espaço não era nosso. Então, vi um homem com roupas brancas, sentado, olhando aquele jardim imenso de flores, com um copo de limonada na mão. Fui me chegando mais perto, e meu protetô soltou minha mão, dizendo: "Minha missão termina aqui. Agora, você vai sozinha."  

Continuei caminhando, e aquele homem virou pra mim, abrindo um sorriso largo. Era meu Zé, me esperando. Meu fio, ele estava lindo, com os cabelos e a barba bem branquinhos, parecendo as nuvens do céu. Ele se levantou, abriu os braços e me acolheu de um jeito tão caloroso, que eu não tinha vontade de sair daquele aconchego. Tamanha era a minha alegria de ver meu Zé de novo.  

Sentamos no banco, rodeados pelo perfume das flores, e ele me falou que tinha pedido permissão ao patrão pra gente sentar ali, naquele banco que era deles, e apreciar toda a beleza que nos envolvia. Foi lindo demais, fio. Veja que, mesmo na espiritualidade, Zé não esqueceu de me agradar, na primeira chance que teve.  

Proseamos tanto, sentados naquele banco que agora era nosso. Falamos dos nossos fios, dos nossos afetos, e com a tranquilidade que era só do meu Zé, nosso amor se fortaleceu ainda mais naquele encontro. Hoje, a gente trabalha junto, mas Zé não incorpora. Ele trabalha com os que têm a intuição de assistido, e está sempre comigo. Nos terreiros que eu vou trabalhar, ele está sempre junto. Né, Zé?  

E assim, fio, a história de vovó Maria do Rosário e seu Zé é como um canto de esperança, um abraço que atravessa o tempo e o espaço. É a prova de que o amor verdadeiro nunca morre, só se transforma. E que, no fim das contas, a gente sempre volta pra onde o coração pertence. 

Santiago Rosa

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