O Vento que Traz a Força: Iansã e o Renascimento no Terreiro
por Santiago Rosa
Era uma noite dessas que a gente sente no osso, sabe? O céu, lá em cima, parecia um manto pesado, costurado com nuvens escuras que já prometiam um aguaceiro daqueles, com vento forte pra sacudir a alma. Mas ali, no terreiro miúdo, onde a simplicidade se abraçava com a grandeza do sagrado, tudo já tava no ponto. O congá, erguido com a fé de quem sabe o que faz, e benzido pela mão de cada trabalhador que não mede esforço, irradiava uma força que acalmava e, ao mesmo tempo, arrepiava. A visita, essa que a gente esperava com o coração na mão, tava ali, sentada no lugar de honra, bem na frente daquele altar que, de tão modesto, era ainda mais santo.
Não era noite de consulta, nem de resolver problema alheio. Era noite de semear, de guiar, de preparar o terreno pra uma nova colheita. A Rainha das Sete Encruzilhadas, como sempre, foi a primeira a pisar no chão sagrado, abrindo os caminhos, como manda a tradição. A presença dela enchia o ar de uma sabedoria antiga, de uma proteção que vinha de longe, de muito antes da gente. Com o fumo que enrolava e a bebida que descia, vinham as palavras que abraçavam, os ensinamentos que fincavam raiz e as bênçãos que escorriam como mel. Tudo fluía, leve, como se o próprio tempo soubesse que ali, naquele momento, um propósito maior se cumpria.
Aí, a convidada foi chamada pra perto, um convite que era um afago, um chamado pra entrar na corrente que se formava. Não teve pressa, nem empurrão, só a verdade nua e crua: o caminho que se abria prometia paz, alegria que enche o peito e a realização que a gente tanto busca, mas ó, ia pedir uma mudança de dentro pra fora, uma transformação que não era pra qualquer um. As palavras, ah, as palavras eram suaves, mas tinham a firmeza de quem sabe o peso do que diz, ecoando a essência mais pura da espiritualidade: o chamado só faz sentido quando o coração tá aberto, sem medo de se entregar.
E foi aí que a coisa começou a virar. O vento, que antes só cochichava, começou a gritar. As folhas das árvores, coitadas, dançavam num ritmo frenético, como se a natureza toda estivesse em festa, ou em aviso. O céu, que já tava carregado, parecia responder ao movimento que nascia ali, no chão do terreiro. Era o sinal, o prenúncio da chegada dela, da Mãe dos Ventos, da Senhora das Tempestades. Era Iansã, vindo de longe, vindo de dentro, vindo pra ficar.
Iansã. Ah, Iansã! Ela chegou como só ela sabe chegar: com a força de um raio, a imponência de um furacão e uma energia que engolia tudo ao redor. A ventania, que já era forte, virou um vendaval, fazendo o terreiro respirar vida e poder, como se cada canto daquele lugar simples se abrisse para receber a grandiosidade dela. A figura dela, altiva, envolta numa saia que rodopiava como redemoinhos, parecia desafiar a própria gravidade, erguendo-se do chão como se fosse parte do próprio céu. Iansã não andava, ela flutuava, leve como a brisa e, ao mesmo tempo, pesada como a tempestade, incrivelmente poderosa.
Os movimentos dela eram um espetáculo, cada giro da saia um sopro de transformação, um convite à mudança. O terreiro, que antes parecia pequeno, virou um palco de grandiosidade espiritual, um universo particular onde a presença de Iansã era absoluta, preenchendo cada fresta, cada espaço, com sua força indomável e sua luz que não se apaga. Era como se o próprio ar vibrasse com a chegada dela, e a gente, ali, sentia a pele arrepiar, o coração bater mais forte, a alma reconhecer a Rainha.
Com um gesto que era mais que um gesto, era um chamado, ela chamou sua filha. A moça, trêmula, mas com os olhos cheios de uma reverência que vinha de dentro, se aproximou. Ali, diante da Mãe Guerreira, tava o encontro de dois mundos, de dois espíritos que se reconheciam na ancestralidade. Iansã olhou pra sua filha, e naquele olhar, ah, naquele olhar tinha um amor que aquecia, uma força que impulsionava e um convite silencioso, mas que falava mais que mil palavras. Então, com a altivez de quem é dona de si, de quem sabe o que quer, ela falou, e a voz dela era como o trovão que anuncia a chuva, forte e clara:
"Eu sou sua orixá de frente. Tô aqui pra te dar tudo o que tenho: minha força, minha coragem, minha luz. Quero que você caminhe pela vida com a mesma altivez que eu carrego. Que seus passos sejam firmes, que sua presença seja marcante. Onde quer que vá, seja a verdadeira filha de Iansã. Distribua amor, lute com bravura e nunca, nunca abaixe a cabeça. Você é minha filha, e eu te quero forte, independente e cheia de alegria, como o vento que não se prende, como o raio que ilumina o céu."
As palavras dela, ah, as palavras! Eram como ventos que varriam qualquer dúvida, qualquer insegurança que morava na gente. Cada frase era uma promessa de proteção, um chamado à grandeza que só quem carrega a força de Iansã no peito pode entender, pode sentir. Era um convite pra ser mais, pra ir além, pra não se contentar com pouco. Era a voz da Mãe, ensinando o caminho da liberdade e da coragem.
Então, como se quisesse mostrar o que tava oferecendo, Iansã girou de novo. A saia dela levantou em redemoinhos, e o vento ao redor parecia sussurrar segredos antigos, segredos de força, de luta, de vitória. A filha sentiu, em cada movimento, a energia que seria sua companheira dali pra frente. A força que ia enfrentar as tempestades da vida e que ia sustentar ela em todas as batalhas, grandes ou pequenas. Era um presente, um axé que se materializava no ar, na pele, na alma.
Quando o rito chegou ao fim, Iansã se despediu com a mesma imponência com que tinha chegado. Os ventos que ruidavam entre as árvores carregavam a certeza de que ela nunca tava longe de verdade, mas sempre por perto, cuidando da sua filha e de todos que ali estavam, com o olhar atento e o coração de mãe guerreira.
O terreiro, agora mais calmo, foi envolvido por outra energia, uma brisa suave que vinha da mata. Era Cabocla Jurema, chegando com a alegria que só ela tem, com o fumo e a marola que enchiam o espaço de uma doçura que acalmava a alma. Jurema, com a serenidade de quem conhece os caminhos da floresta e do coração, olhou pra convidada e falou, com a voz mansa, mas cheia de sabedoria:
"A espiritualidade é um chamado, minha filha. Não é imposição, não. É uma oportunidade de se transformar, de florescer. Umbanda é amor, é caridade, é a luz que a gente carrega no coração pra iluminar o caminho de quem precisa. Você tem tudo o que é preciso pra essa jornada, mas a escolha, ah, a escolha é sua. Esse caminho é de amigos de verdade, de felicidade que enche o lar e de sonhos que se realizam. É um caminho de entrega, sim, mas também de plenitude. Pensa bem, porque esse é um presente que só o Grande Pai pode oferecer."
As palavras da Cabocla, suaves como a brisa, ressoaram no coração da convidada, como um bálsamo depois da força arrebatadora de Iansã. Ela ouviu tudo com atenção, sentindo-se profundamente tocada, como se cada palavra encontrasse um lugarzinho especial dentro dela.
Com a missão cumprida, Jurema se despediu, deixando no ambiente uma sensação de paz e gratidão que abraçava a todos. O som da mata virgem tomou conta do terreiro, e a noite seguiu com a certeza de que algo transformador, algo grandioso, tinha acontecido ali.
Aquela não era só uma noite de orientações. Era uma noite de renascimento. O vento, o fogo e a alegria tinham se unido pra oferecer um novo caminho, uma nova vida. E ali, naquele terreiro miúdo, a força de Iansã, o amor de Jurema e a sabedoria da Rainha das Sete Encruzilhadas tinham deixado marcas que não se apagam — no espaço, no coração de todos que estavam ali e, principalmente, na alma daquela que tinha sido chamada pra caminhar com a espiritualidade, pra viver o axé em cada passo.
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