Pés Firmes, Flecha Certa: A Justiça de Seu Ventania
Antes mesmo que o relógio marcasse a hora, o mundo se moveu como se para avisar que algo maior estava prestes a acontecer. O céu escureceu, a chuva desceu em gotas densas, e o vento – não um vento qualquer, mas uma rajada ancestral – rasgou o ar. Era o prenúncio de sua chegada. Seu Ventania. Eu já sabia. Eu fui avisado. Mas nenhuma preparação seria suficiente para conter a força que se anunciava.
O ponto cantado veio como um sopro divino:
"A lua clareou, brilhou a estrela guia, com a licença de Oxalá... vai chegar Seu Ventania."
E ele chegou. Não como quem pede licença, mas como quem tem direito ao solo que pisa. Chegou como tempestade, mas não uma que destrói; uma que varre, purifica e reorganiza. A terra respondeu à sua presença. O som dos seus passos firmes parecia conversar com o tambor, que seguia pulsando como um coração antigo, batendo no ritmo da vida que nunca termina.
Ele trouxe consigo o búfalo, seu companheiro de jornadas e batalhas. Uma presença tão imponente quanto a dele. Entre os dois, o espaço ao meu redor mudou. Era poeira que subia e virava memória; era força que não se podia medir. A cada passo, era como se os ancestrais estivessem ali, marchando juntos, reafirmando que o passado e o presente são um só.
Seu Ventania pediu fumo e bebida. E então me pediu reverência. Quando tocou meu ombro, o toque não foi apenas físico; foi uma descarga de energia que atravessou meu corpo, atingindo a alma. Naquele instante, eu sabia: nada seria como antes. A fumaça do tabaco carregava uma doçura inesperada, um bálsamo que se espalhava no ar. Mas, ao mesmo tempo, o machado em suas mãos riscou o chão com a precisão de quem sabe o que precisa ser deixado para trás. Ali, ele cortou o supérfluo, as sombras que me pesavam sem que eu percebesse.
E ele falou. Sua voz era mais que som: era trovão. Um trovão que não amedronta, mas desperta:
"Protegido meu, escuta bem o que vou te dizer. Eu te olho e vejo um coração bom. É por isso que faço gosto de ser teu guardião. Mas comigo não tem meio caminho. Ou é certo, ou é errado. A decisão é tua. Usa a tua cabeça, pensa antes de agir. O que tu não queres que façam contigo, não faças ao outro. Caminha pelo reto, porque te garanto: protegido meu que anda no caminho certo não passa trabalho. Mas aprende que cada passo tem peso, e é a tua justiça que decide onde ele te leva."
Ventania é mais que força – é justiça. Ele é da linha de Xangô, e carrega consigo o peso das leis divinas. É caboclo que quebra demandas, que ajusta espíritos inquietos, que protege o mais fraco e expulsa aquilo que não pertence ao mundo dos vivos. Mas sua firmeza não apaga o brilho do seu coração. Ele falou de amor como quem conhece suas dores e delícias. Falou de batalhas como quem venceu todas.
"Protegido meu, a vitória está no caminho do bem. O que fizeres de bom volta pra ti, não como pagamento, mas porque é assim que o mundo gira. Faz o bem e estarás seguro, porque eu estou contigo."
Antes de partir, ele se deteve. Olhou ao redor, para o chão que acolheu seus passos. E disse:
"Eu precisava sentir este lugar com minhas próprias patas. Eu já sabia que era bom, mas agora sei que é ainda melhor. Aqui há luz, e essa luz me dá alegria."
E então, com tabaco na boca e bebida na mão, ele fez mais um pedido: que o chão fosse marcado com força, com firmeza. Cada batida no solo era um lembrete de que ele esteve ali, que sua passagem não foi em vão. Mas não foi embora sem deixar um ensinamento:
"A caridade é o único caminho que eleva o espírito. Caminha por ele, e encontrarás a paz."
Antes que a poeira assentasse, ele abriu caminho para a chegada de Cabocla Jurema, mas sua presença não se desfez. Ela ficou ali, no ar, na memória, nos olhos que viram e nas mãos que sentiram. Ventania é força bruta que cuida, é tempestade que purifica.
Okê, Caboclo Ventania! Que sua flecha continue apontando meu caminho, e que sua força nunca me abandone.
Santiago Rosa
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